SERTÃO PROIBIDO DO CHOPOTÓ DOS COROADOS
- De Freguesia de Sant'Ana de Sapé a Guidoval -

A primeira vez que Guido Marlière pisou por onde hoje é a Esquina foi em 1813. Vinha de São João Batista do Presídio (Visconde do Rio Branco) para criar o Quartel de Guidowald (floresta do Guido). Depois disso muita água rolou por debaixo da ponte, que nem existia. Para que pudesse descansar da longa jornada de cinco léguas entre o Presídio e o Quartel de Guidowald, Marlière construiu um rancho de sapé às margens do Chopotó, o marco zero da nossa cidade.

Cinco anos depois, os alemães Spix (zoólogo) e Martius (médico e botânico) em “Viagem pelo Brasil” visitaram Guido, em sua fazenda-quartel em 1818. Estava surgindo o “Arraial do Rancho de Sapé”.

No dia 24/04/1822, Marlière informa ao Príncipe Regente Dom Pedro I que construiu uma capela para os índios ao pé da Serra da Onça. Menos de cinco meses depois D. Pedro I gritou “Independência ou Morte”, nos libertando do jugo português, tornando-se Imperador do Brasil. Os índios Coroados, Croatas, Carajás, Coropós e Puris, primitivos habitantes da região, nem ligaram para o acontecimento, mantendo-se a tradição de “jamais bater palmas”, fiéis à origem da palavra Chopotó: Che=jamais; =bater; = palmas. Talvez venha daí essa nossa preguiça macunaímica em NÃO APLAUDIR quaisquer shows, espetáculos sejam artistas de renome ou não. Não é indolência ou falta de educação, herdamos essa característica dos Coroados. Fazer o quê? Essa mesma apatia se repetiu tanto na Aldeia do Morro Grande, próximo a povoado de Sapé, como na Aldeia de Cipriano a cem passos da Fazenda Guidowald. Independência eles possuíam antes da chegada dos brancos.

 Guido Marlière No dia 05 de junho de 1836 falece Guido Marlière. No enterro do grande catequista, a viúva D. Maria Victória da Conceição Rosier pranteia a morte do marido, corta alguns cachos de cabelos do esposo, guarda-os no relicário que lhe adorna o pescoço junto com a única imagem do semblante do nosso colonizador. Desta vez os índios se manifestaram em dor e choraram a perda do protetor, apaziguador das constantes guerras.

E foram chegando os forasteiros. Vindo de São Domingos do Prata, Manoel Ferreira da Costa estabeleceu-se onde hoje é parte da sede do município, criando a Fazenda Sapé. Depois trouxe a família. Junto com os filhos Delfino e João doaram 22 e ½ alqueires para patrimônio e criação da Paróquia. Já andava por estas bandas o Padre José Francisco Baião que adquiriu dois terrenos (08/10/1839 e 28/02/1844) de D. Maria Victória Marlière às margens do Rio “Chopotó dos Coroados”.

O Capitão Gonçalo Gomes Barreto, fazendeiro e senhor de escravos, nos idos de 1840, foi o responsável pela construção de uma estrada do Presídio, passando pelo Sapé, Aldeia do Morro Grande, Fazenda Guidowald, Fazenda da Onça, Arraial Meia-Pataca, Capivara (hoje Palma), Registro da Barra do Pomba até aos Campos dos Goitacazes de grande importância econômica para toda a região.

Em 1851, pela Lei nº 533, fica elevado a Distrito de Paz o “Curato do Sapé” que passa a ser conhecido como Sapé de Ubá.

O Cartório de Paz registra, em 29/04/1853, transações comerciais entre José Joaquim Pedroso e Cypriano da Costa Carvalho. No dia 25/02/1856 o Padre José Francisco Baião vende terreno a Moysés Ferreira da Rocha e em 02/04/1856 Dona Maria Victória vende 10 alqueires a Romildo José Campos.

 Primeira Igreja Matriz de SANTANA A Lei Provincial nº 758 de dois de maio de 1856 eleva o Curato à Paróquia. Surge a Freguesia de Sant'Ana do Sapé, tendo como primeiro pároco o Padre Baião. O apelido Sapé, surgido desde o primeiro rancho fincado por Guido Marlière às margens do Chopotó, se incorpora em definitivo ao arraial que prosperava. SAPÉ na língua indígena quer dizer “O que alumia”. Os moradores do povoado têm agora a proteção da gloriosa Senhora Sant'Ana, Mãe de Nossa Senhora, Avó de Nosso Senhor Jesus Cristo, comemorada a 26 de julho. A doação dos terrenos pela família Ferreira da Costa para a criação da Paróquia foi o embrião, a semente para germinar a futura cidade. O tempo provaria que estes pioneiros tinham razão.

Há muito se espalhara notícias da fertilidade das terras da região. Começaram a chegar mais e mais forasteiros, aventureiros de toda parte. Acabou-se o sossego dos índios, os verdadeiros donos da terra. Muitos vieram em busca de riqueza, outros fugindo da justiça e um grupo muito especial à procura da liberdade, tesouro d'alma. Eram os Tavares, Aleluia, Cruz, Tomé e Martins, todos negros fugindo da escravidão. À beira de um ribeirão, depois chamado de Preto, ao sopé da Serra de Sant'Ana trabalharam de sol a sol, poupando-se cada mil-réis pelos trabalhos prestados, até adquirirem o terreno dividido entre as cinco famílias.

Não parou de chegar estrangeiro, imigrantes portugueses e italianos, negros alforriados, o povoado crescendo, o primeiro comércio, a primeira igreja, o primeiro crime, o primeiro casamento. A febre amarela que grassava o Rio de Janeiro desde 1850 começou a fazer vítimas pelo interior do Brasil. A Freguesia de Sant'Anna do Sapé não ficou livre dessa epidemia. Em menos de um ano, de 22/04/1857 a 15/03/1858, o livro de óbitos registra a morte de 31 pessoas com o sobrenome Bagne. Não se sabe a “causa mortis”, mas é muita desgraça para uma só família.

Em 11/11/1858 nasce Bernardo Pinto Monteiro, filho de José Mariano Pinto Monteiro e Carolina Duarte Pinto Monteiro, natural de Ubá. É natural, pois a Freguesia de Sant'Anna do Sapé pertencia a Ubá. Meu amigo Marcellus Cattete afirma que ele nasceu na Fazenda de Sant'Ana, visitada pelo Imperador D. Pedro II, depois propriedade de D. Natinha que dizem ter sido amante do Presidente Getúlio Vargas. Um monumento de fazenda, uma relíquia do ciclo do café, que foi destruída apenas para vender o madeirame. Mas voltando ao Dr. Bernardo Monteiro ele foi Vereador, Deputado, Senador e Prefeito de Belo Horizonte. Hoje é nome de avenida na capital. Vamos pesquisar com maior profundidade a origem do provável ilustre conterrâneo.

No dia 02/08/1859 morre Anna, índia Coroatá e em 29/05/1860 o índio Puri Severino. São enterrados como cristãos no cemitério local.

Em outubro de 1864 começa a Guerra do Paraguai. Não bastasse a febre amarela para aniquilar os mais humildes, surge o conflito militar mais sangrento da América do Sul. A comunidade do Ribeirão Preto, já sofrida pela escravidão faz promessa. Se os seus filhos não fossem convocados para a guerra e nem morressem da epidemia que se alastrava, iriam construir um cruzeiro em homenagem a São Pedro. Atendidos em suas preces em 1870 erguem o Cruzeiro do Ribeirão e em todo 29 de junho festejam, até hoje, com entusiasmo as graças obtidas, num ritual tradicional que emociona os participantes e convidados.

Albino Ferreira de Araújo adquire uma porção de terra com vinte alqueires de plantio de milho na Fazenda Aldeia do Morro.

A Lei do Ventre Livre é aprovada em 1871, livrando-se da escravidão todos os negros nascidos a partir daquela data. Porém a criança ficaria em poder dos senhores de sua mãe até os 21 anos. Liberdade para inglês ver. Em 10/06/1873 Inácio José de Barros e sua mulher doaram três alqueires de terras, a título de permuta, à Paróquia de Sant'Ana, tendo à frente Padre Severiano Anacleto Varella.

Aos dois anos de idade, em 1873, veio morar na Fazenda de Jacinto Pereira, na Serra da Onça, o menino Levindo Eduardo Coelho, depois Senador e pai do Governador Ozanan Coelho. Nasce no dia 16 de junho de 1877, Joaquim Martins, filho de José Martins Ferreira e Joana Martins Coelho. O pai era natural de São João Nepomuceno. Joaquim depois virou fazendeiro, coronel, político, nome de rua, com muita história para contar. Em 06/09/1879 falece o Capitão-Mor Florêncio Pereira da Silva Catete, de 79 anos. Era natural de Mariana.

 Vó Elisa Nasce em 11/02/1888 Elisa Ribeiro, filha da parteira Afra Tereza. Três meses e dois dias depois de seu nascimento, a liberdade limitada da Lei do Ventre Livre era lhe restituída integralmente pela Lei Áurea. O Brasil inteiro comemorou a virada desta página de dor e vergonha da história nacional. Elisa aprendeu com a mãe o ofício de parteira. É a cidadã que mais guidovalenses ajudou a nascer em toda história do município. À benção Vó Elisa!

 Dr. Manoel Basílio Furtado O povoado continuou atraindo aventureiros e desejosos de fortuna. Chega a Freguesia de Sant'Ana do Sapé, em 1891, o Dr. Manoel Basílio Furtado e abre uma empresa de beneficiamento de cereais. Médico, cientista, pesquisador é o primeiro a levantar a biografia de Guido Marlière. É o responsável pela pintura do único quadro que conhecemos do “Comandante de todas as Divisões do Rio Doce” . Conseguiu emprestado de Maria Flávia Marlière a medalha que ela herdara da avó Maria Victória. Dr. Basílio registra em fotografias o incipiente Sapé no fim do século XIX. Muitos comemoraram a chegada do século XX. Dr. Manoel Basílio Furtado não tinha motivos para celebrar, os negócios não andavam bem, fechou a empresa e mudou-se para Rio Novo.

Durante o paroquiato do Padre João Caetano da Encarnação é criado a Conferência de Sant'Ana em 30/06/1901.

Circula em 1906 o jornal “O SAPÉ”, de Belarmino Campos. Casam-se Dionísio Vitorino Maciel e Isaura Rosa Silva. O Tenente Joaquim Henriques da Costa pede providências para consertar a estrada que vai a “Barreiras”, no lugar denominado “Barro Branco”. Encontrava-se adoentado o proprietário da Padaria São Pedro, Sr. Vicente Jorge. A Profª. Mariana de Paiva convoca os pais a matricularem seus filhos na escola de ensino primário. A Sociedade Atheneu Sapeense convida o corpo cênico para uma reunião. Esta sociedade cultural é presidida por Belarmino Campos, músico, ourives, dentista, jornalista, ator, dramaturgo, cenógrafo. É um dos grandes beneméritos do Sapé.

Nasce na Serra da Onça, em 11/05/1906, Ascânio Lopes.

Em 1910, a passagem do Cometa Halley provoca alvoroço no mundo. Muito se falou no fim dos tempos. No povoado do Sapé não foi diferente. Ignorantes, sabidos, zambetas, todos de boa fé correram à Igreja Matriz de Sant'Ana a rezar em busca de um lugar ao céu, rogando a Deus perdão pelos pecadilhos que todo ser humano comete. Padre João Caetano da Encarnação confortou os seus fiéis, não sem antes orar umas dúzias de Pai-Nosso e algumas centenas de Ave-Marias. O cometa passou e só deixou um rastro de beleza nos céus sapeense.

Morre a 22 de janeiro de 1922 o Papa Bento XV. Na velha Igreja Matriz de Sant'Ana o Padre Vicente Cunto Pinto e toda comunidade reza pela alma do líder católico. Em fevereiro realiza-ser a Semana de Arte Moderna. Reflexo do movimento modernista surge em Cataguases a Revista Verde em setembro de 1927. Um dos participantes é o jovem conterrâneo Ascânio Lopes QuatorzeVoltas autor da poesia “Serão do menino pobre”, da qual transcrevo o trecho:

“Quando Mamãe morreu / o serão ficou triste, a sala vazia. / Papai já não lia os jornais / e ficava a olhar-nos silencioso. / A luz do lampião ficou mais fraca / e havia muito mais sombra pelas paredes... / E, dentro em nós, uma sombra infinitamente maior”.

Em 07 de setembro de 1923 reduziu-se o nome da Sant'Ana do Sapé para apenas Sapé. A mudança toponímica não foi motivo de grande euforia, nem houve entusiasmo na comemoração de 101 anos da Independência, o povoado almejava a sua autonomia administrativa. Em 03/04/1927 é criado o Apostolado da Oração.

Com a presença do Presidente do Estado de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, inaugurou-se o Monumento do Guido, na Serra da Onça, em 13 de agosto de 1928, em homenagem ao civilizador que dedicou 23 anos de sua vida a apaziguar e educar indígenas.

Por um breve período, 01/08/1936 a 17/11/1937, governou a Prefeitura de Ubá o médico Dr. Theóphilo Moreira Pinto, pai de Cybele que depois se casou com Ozanan Coelho. A beleza encantadora das sapeenses Cybele e Ilca de Castro Arantes, que se casou com o Dr. José Campomizzi Filho, fez com que ele, mais tarde, espalhasse aos quatros ventos que “Guidoval era a terra das moças mais bonitas do Brasil”. Segui os conselhos do sábio Promotor de Justiça e casei-me com uma guidovalense: Maria de Lourdes Ribeiral.

Depois de mais de 30 anos um novo jornal aparece no Sapé. É a “Voz de Sapé” dirigido por Theophilo Braz Pereira de Mendonça e tendo como Redator o Prof. Aristides Rocha. O primeiro número saiu escrito “Villa de Sapé, 23 de outubro de 1938” e já combatia o vício do fumo dizendo-o “anti-higiênico, tóxico, é um tirano que brinca com o seu escravo viciado”, num artigo assinado por Mário Reis. Condena o “costume deselegante” de uso de armas como facas, punhais e até mesmo pistolas e garruchas de todo calibre, texto escrito por Amadeu dos Santos. É recebido com entusiasmo pelo jovem Sebastião Lisboa Andrade, cujo texto reproduzo em parte:
“Voz de Sapé é a voz das montanhas, das cascatas, dos rios, dos lagos, de Sapé de Ubá. É a voz do sol que doira as campinas rociadas de luz e de vida, da terra de Guido, o desbravador, é a voz da Noite que acalenta o sono da alma sapeense, varonil e intrépida.”
Infelizmente durou pouco esse periódico. Uma pena, pois era muito bem escrito. Cheio de idéias e ideais. Não tinha propagandas, talvez daí a sua rápida passagem pelo nosso povoado. Como se sabe a propaganda é alma do negócio. Por essa época Turunas e Sapeense alegravam os folguedos carnavalescos do povoado em pleno desenvolvimento.

No dia 8 de maio de 1940 toma posse na Paróquia de Sant'Ana o Padre João Crisóstomo Campos. Dinâmico, logo faz um inventário dos bens da igreja, identifica as necessidades e carências da paróquia, abre um Livro do Tombo e inicia a sua administração.

Em 1943 o Distrito do Sapé teve seu nome modificado para GUIDOVAL, em justa homenagem a seu fundador o Coronel Guido Thomas Marlière L'age, esse plantador de cidades em Minas Gerais. O mundo em plena Guerra Mundial nem percebeu que na Zona da Mata de Minas Gerais um francês tivera a honraria de ser nome de um povoado em venturoso progresso. Os novos guidovalenses, sapeenses para sempre, festejaram o acontecimento. Entre setembro de 1944 e maio de 1945, 25.000 soldados brasileiros combateram na Itália. Lutaram conta o fascismo, o nazismo, em defesa da liberdade e democracia. Nos campos italianos morreram 465 soldados brasileiros e 3.000 ficaram feridos. A crueldade da guerra não poupou guidovalenses que derramaram sangue e sacrificaram suas vidas nos campos de batalha na Itália.

No dia 2 de março de 1948 estava em Belo Horizonte a “Comissão Pró-Emancipação de Guidoval” integrada por Padre Sinfrônino Almeida, Manoel Reis Moreira, Astolfo Mendes de Carvalho, Dilermando Teixeira Magalhães e José de Azevedo Costa. Visitaram o Secretário do Interior, Dr. Pedro Aleixo, e se encontraram com o Governador Milton Campos para tratar da emancipação de Guidoval. O jornal belo-horizontino, “O DIÁRIO” publicou matéria sobre o assunto.

 Rua Sete de Setembro (Fundão). Foot do s[ec. XIX de Dr. Manoel Basílio Furtado Em 04 de abril de 1948, Dr. Artur Furtado, publica longo artigo no jornal “Folha do Povo” de Ubá onde manifesta a importância da Emancipação de Guidoval. Por essa época, Dr. Artur mantêm intensa correspondência com o amigo Deoclécio Lopes Catete. Trocam idéias sobre Guidoval, emancipação, nome e instalação do município, das obras essenciais, emergentes e urgentes para a cidade recém-criada. São sentimentos de homens altruístas, pensando no bem da coletividade. Dr. Artur é filho do Dr. Manoel Basílio Furtado de quem herda o amor pela nossa terra. Na década de 30, presidiu o Conselho Distrital do Sapé, ocasião que foi adquirido prédio que depois abrigou classes de aula das Escolas Estaduais Reunidas. Era o casarão que serviu de sede à velha prefeitura. No porão ficava a cadeia. Hoje é Prédio Administrativo e Clube “Álbero Campos”. Dr. Artur, depois se mudou para Belo Horizonte trabalhando na Secretaria de Educação. Residindo na capital do estado, se transforma numa espécie de embaixador de Guidoval, atuando nos bastidores para a emancipação do nosso município.
Daí a minha certeza:

Rua Sete de Setembro (Fundão). Foto do séc. XIX de Dr. Manoel Basílio Furtado

Guidovalense não parte. Reparte!
Uma parte fica. Outra parte, parte!

(Continua no próximo número)


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